Antes de 64, vivíamos a delícia da ilusão política

Antes de 64, vivíamos a delícia da ilusão política
Meu primeiro grande amor começou num "aparelho" do Partido Comunista Brasileiro em 1963, meses antes do golpe militar. Era um pequeno apartamento conjugado na Rua Djalma Ulrich em Copacabana, em cima de uma loja de discos que até hoje existe. No apartamento, havia um sofá-cama com a paina aparecendo por um buraco da mola, entre manchas indistintas - marcas de amor ou de revolução? Na parede, havia um cartaz dos girassóis de Van Gogh e, numa tábua sobre tijolos, uns livros da Academia de Ciências da URSS. Um companheiro me emprestara a chave com olhar preocupado, sabendo que era para o amor e não para a política. "Cuidado, hein, se o dirigente da 'base' souber, vou ser criticado...", disse-me, vendo a gratidão em meus olhos.
Eu era virgem de sexo com namoradas, pois pouquíssimas moças "davam", na época anterior à pílula; transar para elas era ainda um ato de coragem política. As moças iam para a cama pálidas de emoção, para romper com a "vida burguesa", mas correndo o risco da gravidez - supremo pavor. Nossas cantadas tinham uma base ideológica; famintos de amor, usávamos Marx para convencer as meninas.
"Não. Aí eu não entro!", gemiam as namoradas, empacando à porta do apartamento. Nós, sordidamente, usávamos argumentos que iam de Sartre e Simone até a revolução: "Mas, meu bem... deixa de ser 'alienada'... A sexualidade é um ato de liberdade contra a direita..." Tudo era ideológico em Ipanema - até a praia tinha um gosto de transgressão política.
Parafraseando sei lá que escritor, quem não viveu os dias anteriores a 64, não conheceu as delícias da ilusão.
Éramos assim nos anos 60. A guerra fria, o Terceiro Mundo, Cuba, China, tudo nos dava a sensação de que a "revolução" estava próxima. "Revolução" era uma varinha de condão, uma mudança radical em tudo, desde nossos "pintinhos" até a reorganização das relações de produção. Não fazíamos diferença entre desejo e possibilidade. Eu era do "Grupo Vertigem", como um colega mais racionalista nos apelidou. Nossa revolução era poética, uma mistura de Rimbaud com Guevara; tínhamos o sonho de uma beleza que daria fim à "zorra" brasileira que analisávamos com horror; era uma esperança de sentido, um tempo futuro em que a feia confusão da vida se harmonizaria numa perfeição estética - isso mesmo -, minha revolução era um anseio artístico. Para os mais obsessivos, era uma tarefa a cumprir, uma disciplina infernal, um calvário de sacrifícios para atingir não sabíamos bem o quê. Tínhamos os fins, mas não tínhamos os meios, como já disse Janine Ribeiro.
"Revolução" era uma vingança ampla contra traumas familiares, contra pai severo, humilhações, pequenos fracassos. Era também uma mão na roda para justificar nossa ignorância, pois não precisávamos estudar nada profundamente, por sermos "a favor" do bem e da justiça. Era uma maneira de adiar a vida adulta, uma eterna juventude, inspirada nos jovens lindos e barbudos que tomaram Cuba. Era o supremo ódio ao burguês, mas era também uma inveja da riqueza e um medo de assumir um poder de classe. Era generosidade e era egoísmo. A desgraça dos miseráveis nos doía como um problema existencial nosso, lembrando-nos da ameaçadora existência das tragédias da vida. Em nossa fome pela justiça, nem pensávamos nas dificuldades logísticas de qualquer revolução, nas tais "condições objetivas", na intendência, na organização; nada, o desejo bastava. Participávamos também da crença ocidental, desde Platão, de que os fragmentos do mundo são organizáveis numa harmonia possível, numa "solução" apaziguadora das diferenças. Não queríamos saber da crueldade irreversível da política e do irracionalismo que sempre nos regerá. Tínhamos, sobretudo, o medo da gratuidade da vida, ou seja, o medo da morte.
A democracia nos repugnava, com suas fragilidades, sua lentidão, sua obra sempre aberta, sua imperfeição igual à imperfeição da vida. Era difícil fazer uma revolução? Deixávamos esses "detalhes mixurucas" para os militantes tarefeiros, que considerávamos meio inferiores, uma espécie de "peões" de Lenin ou (mais absurdo ainda) delegávamos o dever de fazer a revolução ao presidente da República, na melhor tradição de dependência ao Estado. Jango, coitado, teria de orquestrar as forças delirantes feitas de restos de um getulismo tardio, oportunismo de pelegos e sonhos da juventude ignorante. Deu nos 20 anos de bode preto.
Por que escrevo estas coisas antigas, estimado leitor? Porque muita gente que está aí, gritando slogans, nem tinha nascido nesses tempos de Goulart, outros nunca quiseram ter memória, e muitos não entendem que a via mais revolucionária para o Brasil é justamente o que chamávamos de "democracia burguesa" com boquinha de nojo. Muita gente sem idade e sem memória não sabe que o caminho para o crescimento e justiça social é o progressivo aperfeiçoamento da democracia, minando aos poucos, com reformas, a tradição oligárquica e patrimonialista. Escrevo isto porque acho que toda a luta de hoje é entre a verdadeira esquerda que amadureceu e uma esquerda que quer continuar na ilusão. Escrevo porque vejo, assustado, que nas "pastorais da Igreja", e até na Academia, bispos e intelectuais têm uma fascinação secreta pelo caos, pois acham que, no fragor de uma catástrofe, haveria a revelação de uma "verdade".
Hoje entendo, com um certo orgulho, que, há 40 anos, naquele apartamento conjugado do Partidão com minha namorada, eu gostava mais dos girassóis loucos de Van Gogh do que dos livros de Plenkanov. Mas eu não sabia ainda da importância da democracia, do respeito ao impossível do mundo, da complexidade da luta política. Tanto não sabia que, para levar meu primeiro amor ao apartamento, eu usara uma esperta "cantada de esquerda". Lembro-me de lhe ter dito, entre beijos: "Nosso amor também é uma forma de luta contra o imperialismo norte-americano." E ela foi.

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