A última vez que eu vi Fidel Castro
O Lula foi a Cuba e eu também fui. Só que fui em 1987, quando tive a ocasião de conhecer o Fidel Castro. Fidel era e é ainda a grande atração turística para os intelectuais que visitam a ilha. Eu fui para um Festival de Cinema de Havana e ansiava por conhecer o Comandante. Jovens de hoje não entendem como é difícil para minha geração falar mal do Fidel, condenar os fuzilamentos, as burrices que ele anda fazendo, porque ele "era tudo". Imaginem um bando de garotos barbudos, lindos, com metralhadoras na mão tomando a ilha, expulsando o ditador e fundando o socialismo, sonho máximo de generosidade e beleza que tínhamos. Era apaixonante. Que saudades eu tenho daquela fé e esperança, tão diferente do bode preto que vivemos hoje, quando o único consolo é o cinismo.
Muito antes de ir a Cuba, eu já sonhava com ela, eu e meus amigos que faziam o jornal dos estudantes, em 62/63. Eu era editor e às vezes ficava até tarde na Lapa, na redação do Diário de Notícias, para "fechar" nosso jornal. O socialismo era nossa religião e os operários eram nossos santos, símbolos do futuro. Os operários detinham a força de mudar o mundo, bastando que tivessem "consciência política", como líamos
Como amávamos os operários!... Na alta madrugada, fechando o jornal no chumbo, eu os olhava levando as páginas para prensar na calandra; seus braços fortes pareciam saídos de uma gravura soviética. Andava atrás deles, com ensinamentos políticos, elogios, sorrisos. Alguns, hoje vejo, ficavam desconfiados de tanto amor. "Serão bichas?", pensavam eles. Não, éramos apenas comunistas.
Passaram-se 20 e tantos anos e em 87, finalmente, vou a Cuba. Depois de ver ruir uma fé atrás da outra, restava-me ainda a "paixão pela paixão" que eu tivera por aquela Kubanacan, a ilha da utopia e seu Comandante. Tive até medo de ir, para não estragar minhas saudades de um tempo de certezas, mas um amigo canadense, chegado de lá, cético e frio me disse:
"Go. They have very good jazz and good lobsters." Fui. Comi lagostas no ex-palácio do milionário Dupont em Varadero e ouvi o grande Arturo Sandoval.
Mas, minha primeira impressão foi um choque: as casas de Cuba não estavam pintadas; todas as fachadas de tradição espanhola se descascavam em verde pálido ou em rosa desmaiada, e senti ali o primeiro calafrio de decepção, com o descuido da beleza. Aliás, o que mais se entristeceu no socialismo foi a ineficiência geral que eu senti
Mas, minha fé e meu amor, mesmo em 87, me fizeram esquecer os problemas para eu me banhar no sonho que visitava. Já contei isso em jornal há uns dez anos.
Pois bem, uma noite, fui convidado para um coquetel no Hotel Nacional, celebrando o Festival de Cinema. E a grande atração é que Fidel talvez fosse lá nos conhecer. Suspense geral entre os convidados. Tudo ficava meio provisório, porque Fidel iria chegar. Lá pelas tantas, estou de costas para a porta e senti como um vento a chegada do Comandante, cercado de seguranças, que entrou pela sala como um trem. Fidel foi cercado por todos, latinos, europeus, asiáticos. Uma amiga a meu lado fez uma crítica:
"Uniforme de tergal, com esse verde horroroso... Tinha de ser de puro algodão e, sei lá, outro verde..." Senti a crise do socialismo estampado naquele uniforme. Mas tudo era pequeno diante da presença de Fidel. Era a materialização emocionante de um herói mitológico, como se Aquiles aparecesse à minha frente. Enfiei-me no meio do grupo que o cercava e consegui chegar até bem perto dele. "Comandante..." - falei com firmeza.
Fidel me olhou, sorriu e me deu a mão. Arfante de emoção, agarrei a mão de Fidel e comecei a falar: "Soy de Brasil... y hago peliculas..." Mas o grupo de tietes era voraz e Fidel foi empurrado para o outro lado da sala. Firme em meu propósito, continuei agarrado em sua mão, enquanto ele respondia à pergunta de um asiático chatíssimo falando do "Bloqueio". Fidel jogava como um barco e eu ali, grudado, não largava sua mão. Lembro-me até hoje que sua mão era quente e larga, a palma generosa e muito macia. Sua mão se aninhava confortavelmente na minha, enquanto eu tentava lhe falar. "Comandante...", comecei de novo, gago de emoção. Fidel me olhou, vagando naquele mar de gente e eu, feito um náufrago da revolução, pressionava sua mão com fé, sorrindo-lhe, fixando-me em seus olhos para ele me ouvir.
Foi então que a mão de Fidel começou a sentir por demais a presença da minha. Sua palma começou a tremer, a estranhar aquele contato. O que fora uma irmanação política de "companheiros" foi virando uma intimidade física, com as duas peles se colando. Uma finíssima camada de suor umedeceu a palma do Comandante, pois se apagava a fina fronteira entre a amizade revolucionária e o perigo homossexual: dois homens ali de mãos dadas. E a mão de Fidel começou a querer se libertar do firme aperto da minha. Ela tentou sair pela direita, pela esquerda, se contorceu, úmida, se apinhou em dedos juntos e foi se desprendendo da minha, que insistia no aperto emocionado. Eu lutava para não largar a palma do Comandante, mas sua mão, cada vez mais sinuosa, impaciente, se apequenou e num esforço, quase um solavanco, conseguiu afinal se libertar da minha, enquanto o olhar espantado de Fidel cortou o meu olhar por um segundo. "Será que é uma bicha brasileira, infiltrada?" - tenho certeza que ele pensou. Não, nãão era uma bicha; apenas um ex-comunista, Comandante.
Esse foi meu último contato com o socialismo.
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