Primavera

Cinzento, todo cinzento. Sob uma tarde cinzenta. Sob as asas havia também um pouco de amarelo, notei. A buganvília quase não tem folhas: só flores. Magenta, cor-de-rosa, um híbrido pleno e doloroso. Sobre a mesa da varanda, o cacto se curvou um pouco por causa da última ventania. E no entanto nos basta um momento como este. Telhas de zinco, telhas de cerâmica, um pára-raios. Um cata-vento em forma de flor: roxa, com o miolo preto.

Na mesa de trabalho, ali ao lado, um frasco de colírio, um grampeador e um calendário. Uma máscara de Veneza e um porta-retratos com a porta azul de uma casa em Tiradentes. A página número 312 do livro que está sendo traduzido.
He had, however, bolted the stable door; and by the time they had forced it open there was no sign of him. Três canetas e um envelope pardo. Um enorme dicionário de capa azul e um livro: Seis problemas para Don Isidro Parodi.

Uma mosca passa e vai embora. O chão da varanda está manchado de vermelho-ferrugem e em algum lugar alguém acelera o motor do carro. Um finíssimo véu de claridade respira, e logo se desmancha entre as nuvens.

Adriana Lisboa
é carioca, nascida em 1970. No Rio de Janeiro passou sua infância e juventude, entre a cidade e a fazenda da família no interior do estado, tendo morado por uns tempos em Brasília, Paris e Avignon. Estudou Música — foi flautista, cantora e professora. Há algum tempo se dedica exclusivamente à literatura — é pós-graduada em Letras — sendo hoje considerada por muitos como uma revelação no  campo da escrita, tendo já publicado os romances Os Fios da Memória (1999) e Sinfonia em Branco (2001) e "Caligrafias" (2004), todos pela Editora Rocco. Realiza, também, traduções de textos estrangeiros. Adriana foi agraciada com o Prêmio Literário José Saramago com seu "Sinfonia em branco", em 2003.

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