Quintais

Quintais

Na casa do meu avô, havia quatro quintais.

No principal, o portão se abria para a rua, e ali ficava a casa propriamente dita, e por cima do muro baixo a gente via as cabeças das pessoas que passavam pela rua, sempre tão devagar. Às vezes vinha dar na varanda o cheiro do rio, um cheiro de pano e de barro. Na garagem descoberta, sobre os cascalhos, dormia a Variant marrom do meu avô.

À esquerda, separado por um muro com uma passagem, ficava o universo dos abacateiros e o quartinho que o meu avô chamava de Petit Trianon. Nós apanhávamos abacates para fazer boizinhos com palitos de fósforo. O Petit Trianon eu não me lembro para que servia, ficava quase sempre fechado. Mas eu tinha pesadelos com ele.

À esquerda, separado por outro muro com outra passagem, ficava um universo híbrido em que cabiam orquídeas numa estufa, galinhas, goiabeiras e um pé de romã quase esquecido, lá no fundo, longe de tudo. Era o quintal mais colorido. Uma vez minha irmã caiu de uma goiabeira, a barriga enterrou numa torneira e ela foi parar no hospital.

À direita do quintal principal, ficava o último, e quase proibido. Havia o muro, mas na passagem tinha um portãozinho baixo de madeira, que às vezes a gente pulava por prazer. Lá só havia mato. Árvores altas, sombras, coisas indizíveis se arrastando junto às raízes, barulhos de insetos que nunca existiram de se ver. Lá fazia calor e férias, invariavelmente, mas também podia cair chuva, e a chuva ficava guardada para os nossos pés no tapete de folhas velhas, de frutos podres, de vermes lentos e moles.

Os quatro quintais da casa do meu avô arrumaram-se numa bússola, e quando eu pisei pela primeira vez numa caravela fervilhando de adultos, vinha com ela no bolso. Se não como guia, ao menos como amuleto.

Adriana Lisboa é carioca, nascida em 1970. No Rio de Janeiro passou sua infância e juventude, entre a cidade e a fazenda da família no interior do estado, tendo morado por uns tempos em Brasília, Paris e Avignon. Estudou Música — foi flautista, cantora e professora. Há algum tempo se dedica exclusivamente à literatura — é pós-graduada em Letras — sendo hoje considerada por muitos como uma revelação no  campo da escrita, tendo já publicado os romances Os Fios da Memória (1999) e Sinfonia em Branco (2001) e "Caligrafias" (2004), todos pela Editora Rocco. Realiza, também, traduções de textos estrangeiros. Adriana foi agraciada com o Prêmio Literário José Saramago com seu "Sinfonia em branco", em 2003.

O texto acima foi extraído do livro ”25 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira”,
Editora Record – 2004, pág. 225, organização de Luiz Ruffato.

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