As patrulhas ideológicas voltam a atacar

As patrulhas ideológicas voltam a atacar
Outro dia , a Dora Kramer, fina e cortante, percebeu que os manifestantes contra o governo só jogam pedras e ovos em cima de gente que teve um passado sério de lutas contra a ditadura e contra nossa injusta situação social.
É sintomático isso. Por que os manifestantes não apedrejam Maluf, ruralistas, os oligarcas, os corruptos e atacam justamente os ministros e governadores legitimados por um passado corretíssimo, como Covas, José Serra e Paulo Renato? A explicação talvez seja que os atiradores de pedra e seus mentores não estão contra os inimigos do povo, mas sim contra os que tentam modernizar essa luta, estão contra os que querem mudar estratégias, enfrentar novos impasses que o mundo atual apresenta.
Há um horror a qualquer tentativa de repensar caminhos, encontrar soluções possíveis, sem a paralisante busca da totalidade e da radicalidade, palavras sagradas dos antigos cânones revolucionários. Um bom exemplo: o programa Favela-Bairro, imaginoso e prático, um jeito de sanear as favelas cariocas, que é considerado, por alguns dirigentes do PT, como mero assistencialismo reformista só porque é o governo do Conde. É o velho papo: enquanto não se atacar as grandes causas, nada se fará e, como esse dia nunca chega, nada se faz. E essa impossibilidade é celebrada como heróica.
As patrulhas estão atacando de novo. Eu nunca vi um ódio tão espumante contra governos e prefeituras da situação como agora. Mesmo na ditadura, o ódio aos militares vinha com um sabor de gratidão masoquista aos milicos que legitimavam nossa condição de vítimas enobrecidas. A ditadura justificava a paranóia. Já o ódio a uma ideologia mais terceira via é um ódio contra aqueles que os privam de suas mais secretas perversões, contra aqueles que querem desconstruir velhos hábitos sectários.
É a raiva do fanático contra o herege. Já vi esse ódio contra Gilberto Freyre, já vi esse ódio contra Nelson Rodrigues, contra Glauber, até contra minha pobre figura. A verdade é que o objeto do ódio não é o Covas, o Serra ou o FHC; é a democracia.
As pedras e ovos voam contra a liberdade burguesa. Querem o fracasso do sistema democrático. Só acreditam em dissenso e se recusam a ver o óbvio: que nosso inferno maior é o entulho patrimonialista de 400 anos de um Estado paralítico. A esperança de melhoria das condições de vida pela democracia liberal os angustia. É necessário que nada dê certo para que se prove que só o dogmatismo funciona.
E mais: temem que um aumento de felicidade ou de conforto, mesmo que provisório, desmobilize o desespero das massas para uma convocação revolucionária que eles ainda acham possível no mundo. Como disse outro dia o Décio Pignatari, sempre inteligente: A burguesia internacional ganhou... Será que vocês não vêem isso?
Será que não se vê que o inimigo agora é outro, mutante, informático, veloz, sem cabeça, sem rosto, impalpável, sagaz e que não pode ser atacado por velhas armas e slogans que não rolaram? Coisa que dogmático mais odeia é complexidade, considerada frescura ou traição. Nunca vi esquerdistas tão pouco marxistas, que ignoram a mudança nas condições materiais de produção do mundo e do país e só apelam para os princípios, bóias de salvação moralistas e voluntaristas. Em vez de se dedicarem, como os melhores cérebros progressistas do mundo, a rever estratégias, ficam parecendo aqueles soldados japoneses que continuaram lutando a Segunda Guerra depois da vitória aliada.
O pior, o grave, o sinistro é que esse maniqueísmo ativo serve para qualquer bandeira ignorante, é uma negatividade portátil, que embala observadores ingênuos ou desatentos. Eles detêm uma espécie de selo de garantia para suas verdades, uma espécie de copyright do bem que não se pode questionar. Quem tem coragem de criticá-los, já que eles seriam os abnegados defensores do caminho justo? Intelectuais e formadores de opinião morrem de medo de serem chamados de reacionários, o supremo xingamento. Ficam quietinhos e se deixam banhar burramente por ridículas reduções e truísmos. Ninguém tem coragem de criticar os erros dos tais defensores dos explorados, pois são imediatamente chamados de defensores dos exploradores.
Esses atiradores de ovo parecem lutar contra o monstro da hora, chamado de globalização ou de neoliberalismo, mas, na verdade, acabam ajudando a manter vivo o Estado patrimonialista falido, secular produtor de nosso atraso. Como tem de ser contra as reformas da agenda do governo, essa esquerda não dá uma palavra contra os usineiros de Alagoas, por exemplo, ou outros sugadores subsidiados que estão por trás da falência do Estado.
Isso eles deixam para a imprensa burguesa atacar; eles pensam em coisas maiores, como o futuro, a totalidade e deixam a direita livre, leve e solta, pois, para eles, o inimigo principal é a heresia revisionista. Exatamente como na Alemanha pré-nazista, quando o inimigo era a social-democracia, o que permitiu a subida de Hitler.
O problema é que o tempo não pára, e as forças produtivas do mundo globalizado continuarão agindo sobre nossa resistência colonial. Esse movimento da produção é irreversível e inelutável e chegará pela democracia ou, pior, pelo autoritarismo. Se não vier por bem, ele virá como liberalismo selvagem, garantido por um novo fascismo caboclo, como foi em 1964.
E, aí, os stalinistas se sentirão de novo em casa, bem oprimidos e felizes... E a culpa nunca será deles, pois eles nunca têm culpa, são sempre vítimas -vítimas da ditadura, vítimas do neoliberalismo. Eles adoram uma opressão e, quanto mais são derrotados, mais aumenta sua fé. A derrota sacraliza sua incompetência e santifica sua inutilidade.

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