A clonagem do desejo vai matar a natureza

A clonagem do desejo vai matar a natureza
Tudo bem. Pode ser que eu seja um terrorista, mas eu me sinto mais um benfeitor da Humanidade. Não; isso seria um termo inatual. Não, não , eu não sou benfeitor de porra nenhuma, sou apenas um defeito, um defeito que sobrou — não sei por quê — mas que me deu este olho vivo que detecta tudo a minha volta, hoje, neste ano da graça de 2109.
Estou dentro do Pavilhão dos Homens Bons — que eu observo aqui do meu canto. De vez em quando, eles entoam um coro meloso, evocando paz e harmonia, mas que me soa como um uivo doce, um cantochão desesperado que evoca as sirenes que circulavam em Nova York, no século XXI. Eles são brancos como lagartas, olhos tristes, uma santidade gelada na boca. Eu também sou um HB, um ‘homem bom’, mas restou-me o olho vivo.
Acho melhor eu me explicar. Mas para quem? Pra ninguém, para um ‘outro’ que ainda vive dentro de mim.
Tudo começou no século XXI, com o primeiro homem clonado. Sob os protestos, os cientistas diziam: ‘É para o bem da ciência, o bem da medicina!’ Papo furado, pois o que estava por baixo mesmo era a grana, a corrida das patentes. Por trás do slogan de ‘consertar’ a natureza, reinava o intento de igualar todo mundo num só consumidor ideal.
No século XXI, a única resistência a esse desejo de transformar os homens em belos Frankensteins só foi contestado pelo terror. Logo no início, Osama, o Maomé II, tentou interromper esta marcha para a paralisia da História. O Ocidente balançou com a queda das torres, mas a fome do capital reorganizou tudo, os membros mutilados cresceram de volta, uma chuva de hambúrgueres pacificou o Islã e se refez a utopia mercantil. Dali para a frente, a ciência redobrou seus esforços e cada gene foi decifrado, cada forma de morte foi catalogada e saneada. Começamos a viver muitos anos (eu estou com 107, mas com corpinho de 50), o que gerou problemas previdenciários, resolvidos depois por extermínios periódicos.
Mas o grande mercado da ciência não se deteve. Não bastava a perfeição dos corpos clonados. Surgiu a clonagem dos desejos.
Era inconcebível que, com tanto progresso, sem doenças, sem imprevistos, o Ocidente ficasse ainda à mercê de neuroses, de angústias improdutivas e perniciosas para o bom funcionamento da indústria do entretenimento das massas. O mercado começou a programar geneticamente os desejos. Nas combinações da ‘dupla hélice’ do DNA, pulsões e instintos foram identificados e reprogramados: genes da paixão, genes do tesão, todas as partículas elementares da mente. Os imprevistos do corpo e da alma foram controlados para o bom funcionamento social. Mas, não pensem vocês que vivo numa sociedade regida por ‘Big Brothers’. Nada disso. Nenhuma razão totalitária nos rege. Somos uma democracia. Nós e as coisas nos ‘clonamos’ a nós mesmos. Milhões de produtos que, como prostitutas, clamavam por nosso consumo, tiveram de ser atendidas. Era mais prático para a indústria e comércio. Em vez do jogo de ‘erro e tentativa’ para acertar o gosto do público, programaram-se os desejos, de modo a livrar o mercado dos sobressaltos da liberdade.
Foi quando meu olho começou a ver. Eu andava pelas ruas de Nova York e observava com desprezo as legiões desejantes que me cercavam. Via os pelotões clonados dos ‘felizes amantes’ se beijando, de olhos brilhantes, bocas úmidas; passavam por mim os alas dos adeptos da ‘alegria de viver’, cobrindo-me de flores e fitas; sentia o cálido ardor dos Filhos de William Reich, professando o orgasmo total, com seios e pênis recriados, arfando enlaçados e se mordendo com gritos de tesão, correndo para os motéis do povo; roçavam-me os apaixonados ‘pierrots’ fabricados, chorando com risos deliciados; via os violentos ‘neopunks’ arrebentando caras e narizes de masoquistas coniventes, nostálgicos de porradas; via as ‘senhoras prostitutas’ sendo sodomizadas por PF’s, os professional fuckers , voltando depois para a paz de suas ricas casas; via os AA’s (‘artistas artificiais’), trabalhando com os olhos faiscantes de talento, para abastecer o mercado com programadas novidades; via os best-sellers atendendo as exigências dos editores, (‘agora, é o ano do realismo, agora uma volta ao lirismo, agora a pornografia, agora a nostalgia, agora a esperança’). Aos olhos de um turista, parecia realizado o sonho dos filósofos que ansiavam por uma sociedade que exaltasse o mistério e a arte, navegando no prazer do conhecimento e da imaginação. Mas, depois da passagem de cada legião, ficava um silêncio aterrador e os grupos se paralisavam como bonecos sem engonço, robôs sem corda. O que eu via e vejo é uma Humanidade (caberá o nome ainda?) previsível, paralítica, animais domesticados para a dor e o riso, vermes inúteis sob as estrelas.
Aos poucos, meu terror foi aumentando. Fui descobrindo que a imensa dor que me ia no peito não tinha sido programada por ninguém. Eu era só na cidade. Eu era um defeito de fábrica e senti que tinha uma missão: eu seria o anjo da morte, um herói ou mártir em busca da ‘imperfeição salvadora’. Só a imperfeição traria alguma esperança para a vida.
Foi aí que eu comecei a destruir. Disfarçado de sádico punk programado não causei suspeita quando explodi o Mega Gene Center — acharam que foi acidente.
E hoje, depois de muitas vitórias parciais, vou mais longe. Carrego em minha maleta um detrito do passado, uma velha bomba atômica que dormiu por cem anos no fundo do rancor de minha família. E ninguém sabe que, sob meu manto, guardo o retrato de meu antepassado e inspirador, Osama, o profeta. A cidade vai desaparecer sob uma nuvem luminosa. Eu vou morrer também, mas não vou passar à História. Sou o desconhecido herói do acaso, sou o santo que vai restituir a dúvida, o vazio, o medo, ao povo. Vou trazer de volta a Humanidade imperfeita. Sou o Salvador, mas ninguém sabe quem sou. Sou ilógico. Ninguém imagina que eu possa existir.”

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