A Democracia trouxe a "Revolução da Vulgaridade"

A Democracia trouxe a "Revolução da Vulgaridade"
"Esperávamos a realização de uma utopia e ganhamos Pagode e Ratinho"
Cultura no Brasil está mudando para pior?
Não sei mas estamos passando por um túnel de lixo, talvez a parte suja de uma "destruição criadora". A dor para mim e minha geração de artistas é imensa, pois queríamos construir um futuro país maravilhoso, fruto de um desejo utópico.
No início dos anos 60, como a política pura era chata, transferimos para a "Cultura" - com "c" maiúsculo - o nosso sonho de mudança revolucionária. Iludíamo-nos com isso; o Brasil ia ser "salvo" por uma espécie de amanhecer iluminista. O presente era duro, mas o subdesenvolvimento nos santificava; nossa pobreza era uma forma de "superioridade" franciscana, mais autêntica que os "falsos" problemas europeus, tais como a angústia do pós guerra. Dizíamos: "a consciência do absurdo frescura de rico". A fome nos enobrecia; a fome dos outros, claro.
O subdesenvolvimento era nossa única riqueza. O mundo era dividido em "centro" versus "periferia", numa espécie de bem e mal geográficos. Sentíamo-nos como mártires enfrentando o Leão da "Metro".
Usávamos essa divisão (real) entre "colônia" e "metrópole" como pretexto para nos absolver e para camuflar as doenças hereditárias de nossa formação a cordialidade clientelista, o escravismo na alma e dentro das instituições autoritárias, a falsa democracia, todos os vícios de uma formação patrimonialista ficavam perdoados por nossa "condição de vítimas dos americanos".
Achávamos "bonitinha" nossa incompetência, lida como charme mestiço; achávamos perdoável a "doce" esculhambação brasileira, como sendo quase uma forma de "originalidade", uma poética da precariedade. O desrespeito à coisa pública era visto como simpática identidade de "Macunaíma", contra a caretice "organizada" dos países desenvolvidos, "culpados únicos" de nossa pobreza.
Falava-se de "revolução" com a frivolidade de crianças, como de um Papai Noel que ia chegar naturalmente. Não havia futuro algum para aquele janguismo mágico, coroado por frases bombásticas de Darcy Ribeiro, mas mesmo assim, achávamos que ia rolar um socialismo dançante sem sangue, sem esforço uma revolução "feita pelo Governo". Poucos nomes nos foram tão apropriados como "esquerda festiva".
A ditadura veio como uma porrada histórica em tanto delírio ideológico. Com a ditadura, os mais burros persistiram em seu destinos de "vítimas santificadas" do imperialismo, agora confirmado pela "realidade objetiva". Outros artistas e intelectuais se "beneficiaram", por assim dizer, com a desgraça de 64, aprendendo que o buraco é mais em cima, ganhando a consciência de que não estávamos preparados para a tal "revolução mágica" e que os vícios endógenos de velho Brasil colonial eram piores que o Tio Sam.
Já tínhamos tido, é verdade, a antropofagia de Oswald contra o populismo de Mário, tínhamos tido o concretismo e seu amplo universo formal, influenciando uma visão de mundo mais ambígua no Cinema Novo e, principalmente, no Tropicalismo, movimentos , que relativizaram as certezas nacional-populistas. Glauber , Caetano e Gil previram a globalização da economia. Mas, mesmo com esquematismos de um lado e complexidades de outro, a cultura brasileira continuou com um forte élan finalista, com um porto ao longe, um paraíso ao fim da linha.
Ou seja, entre "esquemáticos" e "complexos", entre "dependentes" à Cebrap ou "onipotentes" à ISEB, continuávamos a cultivar um projeto de país, com mais ou menos sebastianismo denegado. "Nova esquerda" ou "velha esquerda", tínhamos um encontro marcado com o futuro para nosso Estado-Nação. Cultura precisa de esperança, mesmo se vã.
A VOZ DO POVO
Agora a barra pesou mais. De certa forma, o trauma da globalização foi mais terrível para artistas e intelectuais esperançosos, do que a ditadura de 64. De repente, nos aboliram a, bandeira do Estado-Nação. A ilusão de "futuro cultural" compensara nossa impotência política; agora, nem mais isso. Nos tiraram a doce ilusão de "controle" da História e "evolução dialética". E, depois do fracasso da URSS e queda do Muro, ainda veio um oportunista do Departamento de Estado, o Fukuyama, dizer que a História tinha chegado a seu fim. Como se não éramos desenvolvidos ainda? Como?
De repente, nos vimos com uma nação sem contornos claros. Nossas vidas perderam a transcendência; ficamos apenas com o dia-a-dia, ficamos "vazios" como os americanos que trabalham como formigas e cuja única utopia é o mercado e a aposentadoria. A americanização do mundo nos tirou o charme de sermos atores de um processo, mesmo como vitimas "exploradas". Hoje viramos apenas fregueses, consumidores de um mercado. E com a massificação geral do audiovisual, com a invasão de bagulhos culturais, com o acesso da ignorância aos media, estamos assistindo à vitória da verdadeira cultura brasileira: o triunfo do analfabetismo democrático.
Em vez de "revolução brasileira", o que a democracia nos trouxe foi a "revolução da vulgaridade" (e não a estou julgando má ou boa). Temos a democratização de uma cultura de baixo consumo, um feio carnaval que não sabemos ainda como criticar, a não ser como "brega", de nariz torcido.
A verdade irônica é que nunca tivemos tanta produção cultural, de baixa extração (hélas!...), enchendo nossos vídeos e sons com uma euforia cretina, brutal, mas autêntica. Há uma grande vitalidade neste cafajestismo cultural. Não sei em que isso vai dar, mas o futuro chegou: sujo, grosso, mas chegou. Já que em quatro séculos ninguém o educou, finalmente o povo está se expressando, sem dirigismo nem utopias, no pleno exercício de sua sagrada ignorância. E durma-se com um pagode desses. Apesar de eu estar com os cabelos em pé, no meu horror de "utópico deprimido", estamos vivendo uma verdadeira revolução cultura - a democrática, brasileira "revolução da vulgaridade".

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